Em geral as Copas do Mundo são eventos disseminadores de tendências táticas, principalmente exportando ideias para locais onde a evolução é mais lenta. O exemplo mais recente é o torneio de 2010 do qual, mesmo afirmado na Europa há uma década, o 4-2-3-1 partiu rumo à quase unanimidade.

Quatro anos depois Holanda, Costa Rica e Chile vieram à Copa sediada no Brasil apresentando versões interessantes de sistemas com três zagueiros – Sampaoli mais ofensivo com La Roja, enquanto holandeses e costa-riquenhos apresentando o 5-4-1 na fase defensiva.

Não chamou tanta atenção, até por não ser novidade – Conte à época fazia algo parecido na Juventus. Mas agora o treinador italiano empilha vitórias na Premier League levando ao Chelsea a base híbrida de três zagueiros com a qual fora bem sucedido na própria Juve e na seleção italiana.

Além das Copas, outro ponto disseminador de ideias é: resultado. E as campanhas recentes de Conte começam a influenciar equipes da Inglaterra, da Itália e até do Brasil. Estaríamos assistindo ao próximo capítulo da linha do tempo tática? O 5-4-1 / 3-4-3 de Conte? Autor do livro “A Inversão da Pirâmide” recentemente traduzido pelo jornalista André Kfouri, o também jornalista Jonathan Wilson, disse em entrevista à Zero Hora que não enxerga o modelo de jogo de Conte como algo inovador. Mas pode ser que ele mude de ideia.

Sistema híbrido
Já escrevi como os sistemas táticos têm se tornado cada vez mais híbridos – formações muito distintas entre as fases defensiva e ofensiva. E Conte está surfando nesta vanguarda. Com a bola a equipe parte do 3-4-3, mas sem a bola parte do 5-4-1:

inicial_def

inicial_of

Linha de 5 ofensiva
As variações na estrutura inicial, entretanto, não me parecem o principal aspecto do modelo de jogo do Chelsea. É interessante ver como a equipe sai da defesa em linha de 5 para o ataque em linha de 5.

Invariavelmente o Chelsea faz a reinversão da pirâmide, saindo do 5-4-1 para o 3-2-5: os dois alas oferecem amplitude e profundidade simultâneas, ambos abertos e espetados sobre a defesa adversária, empurrando o trio ofensivo para o corredor central, deixando os volantes por trás desta linha e mantendo o trio defensivo ao mesmo tempo aberto e adiantado – muitas vezes com dois zagueiros no campo de ataque:

325_um.jpg

Esta estrutura favorece o ataque posicional, facilitando a circulação de bola devido à permanência dos alas na amplitude e dos volantes no retorno. Define o lado, tenta progredir, e em caso de bloqueio, circula por trás e chega ao outro lado – ou faz a inversão longa. Enquanto isso, o trio de zagueiros também abre, proporcionando que a circulação se dê desde a primeira linha caso seja necessário, encontrando mais de uma alternativa para trocar o corredor e manter a posse.

Além da circulação facilitada, a linha de 5 ofensiva cria grande tensão sobre os zagueiros adversários, aproximando o trio de atacantes sobre a dupla de zagueiros.

O mais interessante é ver o caos provocado pela ausência de extremos – função muito valorizada nos sistemas em duas linhas, principalmente no 4-2-3-1. No Chelsea são Hazard e Pedro. Eles não jogam abertos. Atuam em uma zona quase central, num ponto-cego entre laterais, zagueiros e volantes adversários.

Na entrevista já citada à Zero Hora, Jonathan Wilson endossa esta observação:

“Esses dois jogadores abertos no trio de ataque são muito difíceis de marcar. Não ficam exatamente no meio, então é complicado saber de quem é a responsabilidade de vigiá-los”.

Os zagueiros já estão preocupados com Diego Costa; se buscarem Pedro e Hazard, ficam em inferioridade numérica. Se os laterais os acompanham, abrem os lados para os alas que estão espetados, forçando que os extremos desçam e formem uma linha defensiva de 6 jogadores para compensar. E se os volantes se ocupam deles, deixam o meia e o centroavante sobrecarregados com os dois volantes e os três zagueiros na construção em franca superioridade. O que fazer?

Reinversão da pirâmide
Embora este 3-4-3 se transforme em um 3-2-5 na fase ofensiva, muitas vezes um dos zagueiros se adianta à linha dos volantes, aumentando a superioridade no corredor central e incrementando ainda mais as possibilidades de circulação e de ataque posicional. Forma-se então o 2-3-5, a famosa Pirâmide consagrada na obra de Jonathan Wilson.

Na maioria das vezes é Azpilicueta quem se apresenta pela direita (lateral de origem utilizado como zagueiro), embora Cahill não esteja proibido de fazer o mesmo na esquerda. O espaço surge exatamente pela tensão que a linha ofensiva de 5 jogadores provoca nos adversários – empurra os extremos rivais para os lados da área e abre grande espaço ao avanço de um dos zagueiros. Este princípio deu origem inclusive a pelo menos dois gols de cruzamentos da direita pelo Azpilicueta: ataca o espaço, recebe livre e coloca na área:

235_um

235_dois

Esta é uma estrutura muito utilizada por Guardiola em todas as suas equipes. Encontrei em meus arquivos duas imagens, uma do Bayern e outra do City – ambas partindo do 4-3-3 para formar o 2-3-5 na fase ofensiva.

Alteram-se apenas os movimentos que levam a esta formação: enquanto Conte prefere alas na amplitude máxima, Guardiola quer os extremos na amplitude, deixando os laterais na linha de organização (na imagem do City podemos considerar muito mais um 3-2-5 pelo posicionamento do volante Fernandinho próximo aos zagueiros):

guardiola_um

guardiola_dois

Área ocupada
Conte aparenta estar certo quando pensa o jogo com os laterais na amplitude, e não com os extremos. Se fizesse o contrário, teria Hazard e Pedro – seus jogadores mais decisivos em 1×1 e finalização – distantes do gol. Colocando os alas em amplitude, ele aproxima Hazard e Pedro do centroavante Diego Costa e entre si, formando um trio de grande mobilidade e agressividade – como eu já disse, provocando tensão e caos nos zagueiros.

Outra beneficiada deste princípio é a ocupação da área: estando os três atacantes próximos uns dos outros, e no centro, em iminência de cruzamentos eles podem atacar rapidamente a área. Muitas vezes, ganhando a companhia do ala oposto (segunda imagem abaixo), dando ao ala com a bola entre 3 e 4 alvos para o cruzamento se transformar em assistência:

area_ocupada

area_dois

O mesmo princípio – amplitude máxima com os alas ao mesmo tempo – já era aplicado na Juventus. A diferença é o sistema inicial de base (um 3-1-4-2 que muitas vezes se transformava em 3-4-3 com meio em losango, pelos recuos de Tévez, ao contrário do 3-4-3 com meio em linha do Chelsea). Entretanto, na Juve a linha ofensiva acabava sendo de apenas 4 jogadores – alas abertos, centroavante e mais um por dentro, com os demais na área de criação central logo atrás:

juve_um

juve_sete

“Torre defensiva”
A primeira vez que entrei em contato com o conceito de “torre” foi na leitura do excelente livro “La Pizarra de Simeone”, explicando o modelo de jogo do treinador argentino no Atlético de Madri. Lá ele conta que trabalha com a organização em torre na fase ofensiva, mantendo 8 jogadores no corredor central, escalonados em pares – dois zagueiros, dois volantes, dois extremos centralizados e dois atacantes fechados – deixando os lados exclusivamente para os laterais em amplitude simultânea. Ele, inclusive, atribui estas ideia ao futebol brasileiro, principalmente pelo avanço agudo dos laterais:

simeone

No Chelsea, entretanto, a torre também é defensiva. Sem a bola, Conte tem por princípio que a contenção sobre o portador da bola seja feita prioritariamente pelo ala do setor, subindo seu posicionamento e realizando o combate aberto, o que mantém o ponta do setor na cobertura interna:

balanco_um

balanco_tres

balanco_dois

Este princípio acaba distribuindo a equipe muitas vezes em duas linhas de quatro sem a bola, porque os três zagueiros fazem a basculação na direção do lado atacado, trazendo consigo o ala oposto na primeira linha, enquanto o atacante do setor fica por trás do ala que ataca a bola e se alinha aos volantes. O mesmo acontecia na Juventus, que também trazia o ala para atacar a bola e o ala oposto para a basculação com os zagueiros:

juve_dois

Mas este 5-4-1 em duas linhas na fase defensiva, seguindo o princípio da contenção com o ala aberto (e não com o “extremo”, que permanece fechado) não apenas forma duas linhas como também apresenta uma torre quase inviolável no corredor central.

Pois vejam…se os dois atacantes marcam prioritariamente fechados (um na cobertura do ala que ataca a bola, o outro bem fechado para impedir a circulação), eles acabam formando um quadrado com os dois volantes logo atrás, sucedendo os zagueiros: uma torre, que pode ter 6 ou 7 jogadores – caso um dos zagueiros tenha saído em cobertura encaixada para os lados, são 6; caso contrário são 7, conforme as imagens abaixo:

torre_dois

torre_um

Não por acaso, um dos principais entusiastas deste modelo holandês-bielsista de variações dos três zagueiros – Jorge Sampaoli – já fez isso na seleção do Chile, e provavelmente deve continuar fazendo no Sevilla. Abaixo, encontrei nos meus arquivos este frame de uma organização defensiva com encaixes individuais em todos os setores do Chile contra a Espanha, formando uma torre central:

chile

Variação defensiva
Alguns adversários perceberam que Conte prefere seus alas atacando a bola pelo lado para manter esta torre superpovoando o corredor central e impedindo a circulação dos rivais – induz a saída pelo lado e ali cria um brete de difícil saída. E o que fizeram? Jogaram iscas aos alas do Chelsea, também com amplitude simultânea, impedindo-os de subir a pressão sobre o portador da bola.

Em geral, isso se conquista espelhando o 3-4-3 de Conte – já vi Tottenham, City e West Ham fazerem isso nesta temporada – provocando uma sucessão de 1×1’s que mantêm os alas do Chelsea na linha defensiva.

Nestes casos há uma variação, e quem aborda o portador é o atacante do lado, mantendo os alas na primeira linha e marcando em 5-4-1, o que diminui a vantagem no corredor central, desfazendo a “torre”:

balanco_quatro

balanco_cinco

Atalho no contra-ataque
O 5-4-1 que vira 3-4-3 que vira 2-3-5 (ou 3-2-5) proporciona também constantes subidas de pressão encaixadas, sem ser um sistema defensivo e reativo, como Holanda e Costa Rica fizeram com seus 5-4-1’s na última Copa do Mundo:

pressao

Tanto em bloco alto, pressionando com encaixes e adiantando zagueiros, como também em bloco médio, quando o Chelsea consegue executar o princípio de contenção com o ala, os contra-ataques são muito perigosos. Afinal, se os extremos não estão abertos e recuados perseguindo os laterais adversários até lá embaixo, mas sim estão centralizados e à frente dos blocos de marcação, consequentemente o caminho para o campo adversário é mais curto.

Com isso, Hazard e Pedro ao mesmo tempo se desgastam menos para marcar (apenas protegem os alas em coberturas centrais, fecham as possibilidades de retorno pelo meio e adiantam pressão) e ainda menos para contra-atacar. Estão próximos do campo adversário, em região central, e próximos um do outro, chegando em melhor condição no momento da transição ofensiva:

transicao

transicao_dois

Discordo de Jonathan Wilson quando ele subdimensiona a importância das ideias de Conte para a evolução tática no futebol. Ele mesmo era autor de uma excelente coluna no jornal inglês The Guardian, chamada ” The Question”, na qual lançava ponderações sobre conceitos que soavam vanguardistas e pioneiros – possíveis tendências, portanto.

Acredito que caberia num “The Question”: seria o 3-4-3 de Conte o próximo capítulo na linha do tempo tática?

Quem sabe. Afinal, é um sistema que inverte e desinverte a pirâmide no mesmo jogo – defende em linha de 5 e ataca com linha de 5 – encontra soluções para alguns paradigmas que estavam na zona de conforto dos enfrentamentos de extremos x laterais, e começa com resultados e bom desempenho a se disseminar por aí.

Vale ficar de olho. Abaixo, o vídeo que serve de base para os frames do post:

Modelo de jogo do Chelsea – temporada 16/17 from Eduardo Cecconi on Vimeo.

Uma resposta »

  1. Eduardo, um excelente texto! Parabéns! Sempre aprendo (aprendemos) muito contigo!

    Teve um parágrafo de seu texto que me fez lembrar do último City X Chelsea, que terminou com vitória do time londrino. Guardiola usou marcação individual em parte do jogo para sufocar a saída do rival…Pensei nisso quando Wilson disse o seguinte:

    “Esses dois jogadores abertos no trio de ataque são muito difíceis de marcar. Não ficam exatamente no meio, então é complicado saber de quem é a responsabilidade de vigiá-los”.

    Com o grande conhecimento tático dos jogadores de hoje e o futebol jogado por “organismos vivos” que temos hoje, não poderia tornar mais usual a marcação por encaixe? Assim como o uso dos três zagueiros parecia antiquado até tão pouco tempo, a marcação por zona pode não ser mais tão óbvia quanto parece, pelo menos pra leigos no assunto como eu.

    Abraço!

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  2. Bebeto Stival disse:

    Eduardo, excelente artigo sobre essa nova evolução tática. Como eu estou a mais de 40 anos na área e algum tempo de vivência fora do Brasil, pude ver diferentes formas de jogar e estou certo que essa evolução não vai parar. Eu tenho hoje uma opinião relativo ao aspecto tático do futebol. O profissional que trabalha como técnico terá que buscar alternativa táticas na organização defensiva, treinar outras situações na sua organização ofensiva e quando chegar ao ataque já estará finalizando as suas jogadas em variação tática. Concluo que o técnico moderno não poderá ficar mais preso a um sistema de um único jogo e sim buscar alternativas para neutralizaras ações do adversário ou na organização de sua forma de jogar. Abraço.

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    • eduardocecconi disse:

      Obrigado pelo feedback. É exatamente o que eu penso, por isso minha fascinação inicial com as ideias do Conte. Abraços.

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  3. Marcelo Lessa disse:

    Muito bom o texto, parabéns! Mas gostaria de ponderar uma questão: será que é nova essa tendência de jogar, ou é apenas uma releitura de outros esquemas já visto em outros treinadores? Pois acho que estes mecanismos, como vc mesmo disse, estavam sendo utilizados, só que de modo diferente, por outros técnicos. Para mim, o conceito continua sendo o mesmo, independente de esquema ou escalação de equipe. Acho que o Conte tem muito mérito em detectar a melhor formação de acordo com o elenco que ele tem nas mãos, assim como o Klopp no Liverpool, algo que o Guardiola não conseguiu ainda. Parabéns pelo texto!

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  4. Carlos Cabral disse:

    Parabéns Eduardo pela excelente análise e muito bem detalhada. Acredito sim que o Conte pode estar criando uma tendência.

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  5. Bebeto Stival disse:

    Eduardo, sou o Prof Bebeto Stival, atuante na área do futebol, formado em Educação Física. Gostaria de informa-lo que tenho compartilhado seus artigos em meu facebook, por achar muito interessante a sua forma de colocação com relação modernidade da evolução tática no futebol atual. Grato pelo divulgação das suas análises. Abraço.

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  6. Fábio Nonato disse:

    Parabéns pelo artigo. Gostei dessa visão tática bem detalhada sobre o time de Conte, mudou o que eu pensava a respeito. Abraço!

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